Amiguinhas

Flora Borges
3 min readMay 26, 2021

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Quando tinha 10 anos, minha mãe me buscava na escola na hora do almoço, a gente comia qualquer coisa na rua, e depois ela me levava para o trabalho dela para passar o resto do dia. Ela trabalhava como secretária na clínica de uma ginecologista. Eu precisei ficar lá por um tempo, pois a vizinha que me olhava estava cuidando da mãe doente e minha mãe achava perigoso eu ficar sozinha em casa. A médica deixou, afinal de contas eu era quietinha, e ela devia me achar “limpinha” também, não ia assustar nenhuma cliente. Chegava, fazia tarefa e depois ficava assistindo televisão, lendo as revistas da sala de espera (Veja, Cláudia, Contigo, mas a que gostava mais era a Proteste).

A chefe da minha mãe de vez em quando levava a filha dela pra lá, a Maria Júlia. Ela levava Banco Imobiliário, Jogo da Vida pra gente jogar. E vivia fazendo piada com os tênis que eu usava, eu tinha 2 pares, com o jeito que eu falava, com o meu uniforme surrado de escola estadual.

Perguntava onde eu ia passar o feriado, eu respondia ‘em casa’. Ela ria e falava ‘eu vou passar na praia, você nunca deve ter ido, né?’. Respondia que não.

'Nossa, deve ser muito ruim ser pobre, né.’ Eu ficava sem falar nada.

Perguntava em qual restaurante já tinha ido, eu respondia ‘nenhum’.

Ela ficava rindo. ‘Se brincar, você não sabe nem pegar em garfo e faca, né. Ai, coitada.’

Entre outras coisas que ela inventava na hora.

Um dia, fui na lanchonete que tinha lá perto. Estava sozinha, a mãe dela não deixava ela andar na rua. Fui comprar cachorro-quente pra nós duas. Com o dinheiro da minha mãe, claro. Comprei nosso lanche e vou andando de volta, logo atrás de um senhor, que limpa a garganta e dá aquela cuspida no chão. Chego a andar mais devagar de tanto nojo. E então parei, vi um palito de picolé jogado na calçada e me veio uma ideia.

Cheguei na clínica toda feliz e saltitante, fazia tempo que não me sentia daquele jeito. Tive o maior cuidado para separar o meu cachorro-quente do dela, afinal o dela era especial. Achei muita graça de vê-la comendo e ela me olhando enquanto perguntava, ‘você ficou louca, do que tá rindo?’

No dia seguinte, a Maria Júlia não apareceu. A chefe da minha mãe falou que ela estava doente. Cheguei a ficar gelada de tanta preocupação. Me tranquei no banheiro da clínica e comecei a rezar convulsivamente, coisa que nunca havia feito antes. ‘Senhor, tá certo que ela é uma merdinha, uma idiota, mas não deixa ela ficar doente por conta daquele negócio nojento que coloquei no cachorro- quente dela, juro que nunca mais faço isso!’

Mal dormi à noite. No dia seguinte, lá estava ela de novo, falando que foi só uma dor de garganta com febre e estava se sentindo melhor.

‘Uma dessas viroses comuns em criança. Uns dias atrás ela recebeu a visita de uma priminha gripada, deve ter passado pra ela’, disse a mãe.

Me tranquei no banheiro e agradeci em voz baixa, toda aliviada, segurando minhas mãos: ‘Obrigada Senhor, por ter salvo a idiota!’

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